O texto abaixo é o posfácio da antologia Invenção de complô, que organizei e está em pré-venda até o dia 10 de dezembro de 2024 no site da Tilápia-azul.
A publicação reúne cinco poetas “que buscam modos de aparição, às vezes, excludentes, às vezes, semelhantes para o poema”: Alekole, Kauam Mattos, Letícia Galvão, Lucas Ribeiro Rocha e Wendell Campos.
Para o projeto, contei com a ajuda de Chrisley Luiz Santana na consultoria gráfica e de Lucas Ribeiro Rocha na revisão textual.
Outras informações, é claro, constam no site da Tilápia-azul.
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Fogo oculto
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia”.)
Words, if you let them, will do what they want to do and what they have to do.
(Anne Carson, Autobiography of Red.)
Há certa aleatoriedade na junção de poetas com biografias e estilos distintos numa antologia como esta, cujo complô dado no nome serve menos de procedimento por meio do qual se opera que de ornamentação. Ao menos, por enquanto. O que compartilham entre si — e o que compartilho com eles — está circunscrito no acaso tanto espacial quanto temporal, já que somos da mesma geração de artistas que amadureceram e estabeleceram o trabalho em Sergipe na última década. A aleatoriedade se encerra, talvez, na relação que é anterior à construção desta antologia, isto é, no modo como me aproximei das obras de cada um e de cada uma, mesmo quando o que estava em jogo não era a poesia, mas outra linguagem — uma semelhança: os poetas deste complô se dedicam a outros campos, como as Artes Visuais, o Cinema e o Teatro, sendo a poesia, recorrentemente, um instrumento em segundo, terceiro plano na prática artística. A poesia é, afinal, o trabalho que se faz nas horas vagas. O trabalho que se faz com e por meio da indeterminação. Sem verniz de profissionalismo. (Como lembra Wendell Campos no poema derradeiro, cujo título é “Reinvenção”: “[Tenho] A agenda tomada de regras e horários/ O nome do emprego estampado num pano.”)
Quando pensei na imagem do complô para o agrupamento e a publicação, pensei, é claro, no significado mais óbvio: uma trama secreta que arquiteto, neste caso, com cinco pessoas, para que se efetive a publicação, para que se invente algo e se desfaça, por último, a ideia de complô, uma vez que, ao vir à tona, ele perde o que lhe é próprio. Os enigmas, eles se encerram. Mas o complô, se se quiser simplificar, instala uma cena que se aproxima do exercício de edição. De forma discreta, entro em contato com os participantes da antologia, a quem peço um número indefinido de poemas para lê-los sem compromisso, até que, aos poucos, possa organizá-los, para que um estilo — ou uma unidade que se acomoda na dessemelhança — fique à mostra. E, sem ter consciência do trabalho que se efetiva nas sombras, os poetas aderem ao projeto. Nem eu, organizando a trama, tenho dimensão daquilo que ela pode vir a ser: subordino-me também aos graus de incerteza.
E qual forma, a não ser o poema, colabora com a invenção de um complô, de um enigma, de uma trama secreta? No corte de um verso para o outro, ele assimila o silêncio, que, desse momento em diante, vê-se de igual para igual com a enunciação que está dada ao lado: com a fala — o que aqui é “uma fala de aproximação ou de encontro”¹, reforçando o pensamento de Silvina Rodrigues Lopes, para quem o poema é um tipo de “fala-aventura” que abre caminhos por meio do desconhecido. O desconhecido tanto na composição quanto na leitura, dimensão dupla que depende da força desejante destes agentes: leitor e poeta, poeta e leitor. Daí o poema — elíptico por excelência — formar um complô ao redor de si mesmo, sobretudo se estabelece algum vínculo com a memória de quem o escreve. Quando se inclina para a captura de um acontecimento², ele excede, sem pestanejar, os limites do factual e da verossimilhança. Torna-se vestígio — tal qual a cinza que é vestígio do fogo, como também lembra Silvina Rodrigues Lopes³. O acontecimento, à medida que o poema se torna a memória em operação, é enigmático. Para nós, mantém-se oculto. Do mesmo modo, o fogo. O que temos em mãos, é verdade, são os vestígios de experiências cada vez mais irrecuperáveis.
Na hora da leitura, a tarefa mais ingrata tem a ver com rastrear os traços biográficos dos poetas, que, porém, oferecem-nos uma série de indícios sobre os acontecimentos que escamotearam entre um verso e outro, como os meses de junho e julho para Alekole e Kauam Mattos ou mesmo a Urca para Letícia Galvão — uma “urca”, aqui, em caixa baixa, pois o detalhe tipográfico corresponde a uma dimensão significativa do texto poético, a ponto de iluminá-lo ou obscurecê-lo. Sem dúvida, o rastreamento é tentador, mas um contratempo. A invenção, uma hora, determina a escrita — o que se revela, o que se camufla; o que permanece no lusco-fusco, como dimensão intervalar, inclusive. Mais que um relato ou um testemunho, porém, a poesia produz ritmos e tons, aos quais nos adaptamos. Assim, diferencia-se da cinza como vestígio do fogo, para a qual o ritmo, o modo de aparição — a forma, afinal —, é insignificante.
Silviano Santiago, ao escrever a respeito dos poemas de Ana Cristina Cesar, fez um convite à instalação do fracasso na leitura, sobretudo como estratégia escolar. Ele rejeita a leitura bem-sucedida, porque há algo de singular no modo como cada indivíduo lê: “Como uma assinatura, uma leitura não é transferível, sob o risco de falsificação ou imitação barata”⁴. Mas como ensinar o fracasso? Questão sem solução, exceto pelo movimento que está explícito nos versos de Lucas Ribeiro Rocha, dando eco ao pensamento de Silvina Rodrigues Lopes — aproximação, distância: “A distância se aproxima. [...] Próximo distante, você/ não consegue me ver?”. O outro com o qual o poeta fala é singular e anônimo. É você, leitor e leitora, com quem os poetas querem experimentar o fracasso. Testá-lo num “estado de contínua travessia para o outro”⁵. Pois a lição que está dada e para a qual temos resposta é que o poema “sem ser carta, sem ser carta aberta, abre no entanto lugar para um destinatário”⁶, do qual nos distanciamos e nos aproximamos, sem cessar.
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1. Silvina Rodrigues Lopes, “Defesa do atrito”. In: Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2022, p. 167.
2. Em “Procura da poesia”, Carlos Drummond de Andrade reflete sobre a escrita de um poema e lança luz, acima de tudo, para a materialidade das palavras, reino no qual os poetas devem penetrar surdamente — “Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata.” Drummond, por um momento, abre mão dos acontecimentos e das dramatizações a fim de provocar uma convivência com o texto que ainda não foi materializado, mas que contamina quem pode escrevê-lo. É um convite à relação. E parte disso vale não só para os poetas, mas também para os leitores, que, parafraseando o homem de Itabira, podem chegar mais perto e contemplar as palavras, uma por uma das “mil faces secretas sob a face neutra” (Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia”. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 105).
3. Silvina Rodrigues Lopes, “A poesia, memória excessiva”. In: Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2022.
4. Silviano Santiago, “Singular e anônimo”. In: 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 404.
5. Silviano Santiago, “Singular e anônimo”. In: 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 400.
6. Silviano Santiago, “Singular e anônimo”. In: 35 ensaios de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 400.
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Invenção do complô (Tilápia-azul, 2024).