Diário de pesquisa: segunda parte
Quarta-feira, 11 de setembro de 2024
Modifiquei meu lugar de trabalho. Saí da Biblioteca Epiphanio Dória para a Biblioteca Central da UFS. De Aracaju para São Cristóvão, um itinerário ao qual já estou adaptada, porque costumo repeti-lo semana sim, semana não, sem intervalos de longa duração — para mim, a passagem de um ponto para outro representa uma linha reta: de um extremo de Aracaju, no encontro do Rio Sergipe com o Oceano Atlântico, para o início de São Cristóvão, no bairro Rosa Elze, logo depois da ponte sobre o rio que, acredito, é o Vaza-Barris, mas pode ser o Rio Sergipe ou um afluente — sem contato com águas salgadas, nesse caso —, o que representaria uma viagem circular — quer dizer, uma coincidência geográfica. Por sinal, a linha reta é uma invenção dos meus sentidos que não notam, sem os mapas, as variações no deslocamento de uma cidade para outra. Sendo passageira, ignoro os detalhes da estrada. A paisagem é linear: uma sequência de quadros que se redistribuem a cada vez que, no fundo de um ônibus, junto-me aos outros passageiros. Eles devem ter, cada um, uma impressão geográfica própria. Distintas umas das outras.
Resisti à mudança, pois a universidade é um lugar tão familiar quanto a outra biblioteca, onde acumulei menos experiências. Seria, logo, o período ideal para explorar relações novas. Em vez disso, vim à universidade onde estudei à espera de repetições — cenas, encontros, gestos. Repito a mim mesma nesse cenário. Mas a verdade é que os lugares jamais se esgotam, desde que haja uma predisposição à mudança. Agora, dirijo-me à universidade sem vínculo institucional, mas com acesso às salas e ao acervo de obras raras. Sem empecilhos, exceto o fato de um funcionário me pedir para soletrar Ode órfica, que é um dos títulos de Santo Souza, para iniciar a pesquisa no acervo, e sei que encontraremos o exemplar logo depois de passar pela menção de cada palavra. O caso é menos um empecilho que um imprevisto, no fim das contas. O título, como escreveu Santo Souza, não é. "O título não soma./ O título seria apenas./ Apenas. E só."1 Eis um fragmento de "Explicação do título", de Pássaro de pedra e sono — livro cujo nome dispensa a soletração. Em Santo Souza, o título é um instrumento de negatividade, por conta do qual tenho que me esforçar para ser legível para o outro. Repetindo-o.
As estantes da Biblioteca Central são tão organizadas quanto as estantes da Epiphanio Dória. Pelo fato de os livros seguirem o sistema dos bibliotecários à risca, fico à espera dos exemplares à frente do balcão, por isso que, como visitante, perco a chance de iniciar o fluxo labiríntico que pode me levar ao reconhecimento de uma lombada ou à frustração, como o faço em Aracaju. Na universidade, o ar-condicionado da sala de Documentação Sergipana é menos agressivo que o ar-condicionado de uma das salas da outra biblioteca, motivo pelo qual ficava — ao lado de outros pesquisadores — numa varanda. Lá, devem chegar os ventos que, a poucos quilômetros de distância, testemunham o encontro do rio com o oceano. O ponto de vertigem. Da vertigem inaugural. Continuo o exercício comparativo: a conservação dos livros é também outro fator pelo qual devo permanecer em São Cristóvão. Assim, evito o contato com partículas que podem colocar minha saúde em risco, prolongando, sobretudo, a duração da pesquisa. Outra parte crucial é o fato de eu ser a única pesquisadora na sala de documentação. Sozinha, posso replicar os gestos que me acompanham da leitura à escrita e vice-versa. Uma profusão de atos: enrolar o cabelo, levantar a cabeça, respirar fundo, roer a cutícula etc. Mas, antes de uma conclusão, é preciso dizer que há algo de desonesto na comparação que construí até agora. Adulterei a realidade. Isto é, criei um cenário de insatisfação que não corresponde à experiência na Biblioteca Epiphanio Dória, em Aracaju. A que custo?
Quinta-feira, 12 de setembro de 2024
Quando pensei em rastrear imagens da infância na poesia de Santo Souza, deduzi que atingiria, no lugar de vínculos com o mito de Orfeu, a morte e a noite, outro eixo de leitura, porque dar continuidade à visão mais estabelecida é, a meu ver, imobilizar a obra: impô-la um cárcere a partir do qual os poemas se restringem a um lugar-comum que, de repetição em repetição, esgota-se. A “linguagem órfica” ou “obra órfica”, como dizem os prefaciadores que reiteram o argumento do crítico Jackson da Silva Lima, é a expressão determinante. Está em todos os lados, onipresente, sendo improvável passar pelos poemas de Santo Souza sem ter contato com ela. Porém, em minhas leituras, o significado da linguagem órfica não está dado — ao que se referem? Às menções a Orfeu, às menções ao submundo, às menções aos argonautas? Ou, sob outro ponto de vista, à diluição dos símbolos do orfismo — à morte, à noite, à passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos e, como consequência, o retorno? À obscuridade? A uma profusão de elementos que, juntos, garantem o paradigma lúgubre ao redor do qual os poemas orbitam?
Aqui, a infância seria um traço por meio do qual demonstro a ambivalência do trabalho poético, sem recorrer a um inventário dos antípodas, como imagens diurnas e vivificantes que se alimentam de um embate. Isso seria uma simplificação pretensiosa, até porque não havia, no meu percurso de leitura, registros tão evidentes de opostos complementares nos poemas de Santo Souza. Continuo sob os efeitos da paisagem obscura. Mas, nela, há inclinações para elementos autobiográficos que são pouco citados por prefaciadores dos livros. E, a princípio, eles estão ligados à infância, tais quais os versos de "Quase canção para embalar José", o poema derradeiro de Concerto e Arquitetura que prefiro, por enquanto, deixar de escanteio, a fim de me deter sobre um poema no qual a infância se associa à noite: "Menino insone", do livro Pássaro de pedra e sono — um soneto cuja extração de significados impõe incertezas quanto à validade da própria interpretação, e se creio no que escrevo sem hesitações, creio de modo insatisfatório, porque a leitura de um poema implica o indiscernível por si só. Copio Maurice Blanchot:
Ler um poema não é ler ainda um poema, nem mesmo é entrar, por intermédio desse poema, na essência da poesia. A leitura do poema é o próprio poema, que se afirma obra na leitura, que, no espaço mantido aberto pelo leitor, dá nascimento à leitura que o acolhe, torna-se poder de ler, comunicação aberta entre o poder e a impossibilidade, entre o poder vinculado ao momento da leitura e a impossibilidade ligado ao momento da escrita.2
Na cadeia de palavras de Blanchot, há o tipo de refinamento que, desde o primeiro contato, persigo, na medida em que faço da leitura e da releitura meu gesto primordial a caminho da criação, o que é uma paráfrase do autor, com o qual exercito a escrita. Melhor dizendo, um ritmo para a escrita. A ideia de refinamento é limitada, uma vez que, na escrita, deve haver abertura para o desalinho, a indisciplina, mas ela serve como movimento introdutório, por conta do qual me deparo com as brechas e as fraturas que residem numa obra, crítica ou poética, sem que possa, de imediato, mencioná-las, pois formam o espaço no qual minha interpretação falha. Logo, dizem menos do outro que de mim. De minha incompreensão. Após a leitura, é preciso conviver com o que não foi assimilado. Nem há de ser. É inevitável — o espaço de não saber que se instala a cada vez que inicio o contato com um texto. Ora, uma vez que os instrumentos para a leitura são precários, o enfrentamento de um texto há de preservar as lacunas que são desdobramentos da precariedade.
Da impossibilidade de ler um poema, extraio a chance de construir — ao menos — uma relação. No caso, com o "Menino insone", de Santo Souza, no qual a infância não se associa ao discurso memorialístico. O sujeito poético dá voz a uma infinidade de vozes a fim de anunciar o motivo pelo qual houve a interrupção do sono: "Quem te acordou, menino, fomos nós/ — tristes filhos do mar — enquanto a noite/ reunia o ouro do sonho derramado/ em teus olhos de infante adormecido."3 São dos argonautas, as vozes — tripulantes de embarcação que, na poesia de Santo Souza, assumem a condução da paisagem noturna. É a hipótese proeminente ou, a bem da verdade, um exemplo de como a herança está associada ao ato de ler, pois a leitura de um poema precede a leitura de outro poema. O que extraio do "Menino insone", é verdade, ilustra o espaço lúgubre de Pássaro de pedra e sono. Espaço pelo qual circulei. Como leitora, deixo-me contaminar por todas as vias de expressão do livro. O miolo e as margens. A relação com a obra, se se quiser íntima, talvez esteja na repetição de um ritmo que está dado nos versos. Um ritmo por ser descoberto, de leitura em leitura: um ritmo da relação.
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1. Santo Souza, "Explicação do título", In: Pássaro de pedra e sono. Aracaju: Sociedade Editorial de Sergipe, 2012, p. 14-15.
2. Maurice Blanchot, "A comunicação". In: O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 215.
3. Santo Souza, "Menino insone", In: Pássaro de pedra e sono. Aracaju: Sociedade Editorial de Sergipe, 2012, p. 69.
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Este diário faz parte da pesquisa Embalo, palmatória: a infância em Santo Souza, cuja fonte de financiamento é o edital para "Publicações e pesquisas" da Lei Paulo Gustavo (LPG) — aplicado pela Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).